Notícia RELEASE


Medo Racional x Medo Irracional

Afinal, quem não sente medo? Seja qual for a sua expressão, duração ou intensidade, é inegável que o medo é uma emoção universal e tem sua marca suficientemente instalada na história da evolução da raça humana. Por vezes ele pode até parecer ineficiente, dispensável e perigoso no nosso dia a dia, uma vez que percebemos o quanto nos atrapalha a cumprirmos objetivos, alcançarmos metas ou até mesmo executarmos uma simples (mas no fundo, torturante) ação. Já ouviu a frase “se estiver com medo, vai com medo mesmo”? 

 

Há uma tendência natural - que não percebemos, na maioria das vezes, de ignorarmos as perspectivas positivas de um fenômeno e elegermos as negativas para condenar. É aquela velha história de só perceber o erro dentre mil acertos. “Quantas coisas o medo me impediu de fazer”, “quantas oportunidades perdi”, “depois de perder a chance, vi que o medo só me atrapalhou”. De fato, podemos escolher fugir de situações de forma precipitada, desconsiderando uma avaliação racional do que ela realmente significa. Entretanto, vire o lado da moeda, faça o exercício de avaliar a quantidade de eventos em que o seu medo foi eficiente em gerar comportamentos que te libertaram de riscos e perceba, sem muita dificuldade, que graças a sua precaução, você está vivo.

 

Observe o cenário atual e pense: o que seria da humanidade se não tivéssemos informações essenciais para nos prevenirmos de um vírus tão letal quanto esse? Especialistas projetam como o futuro seria caótico se não tivéssemos acesso à informação e nossos mecanismos preventivos são colocados à prova quando pensamos: quão terrível seria? Se hoje estamos cautelosos e seguindo recomendações de autoridades, é porque nos preocupamos com a nossa saúde e a de nossos pares. Mais do que isso, é porque temos medo. 

 

Hoje, é difícil pensarmos em alguma pessoa que não está minimamente temerosa com a crise pandêmica e não passa, constantemente, por pressão psicológica ao tomar cuidados redobrados para evitar que o pior aconteça. Até os mais incrédulos, ora ou outra, se veem confrontados e obrigados a tomarem decisões que zelam pela sua vida. Os benefícios são claros, a vida deles está preservada e o medo, dia após dia, salva suas peles. 

 

Por outro lado, é fácil pensarmos em alguém que está transformando o caos externo em uma batalha contra sua própria obsessão. Nessa guerra, os seus pensamentos catastróficos estão na linha de frente, ofuscando a realidade e deixando-a perigosa demais para sequer pensar em enfrentá-la. Essa pessoa é capaz de gerir combates contra possíveis ameaças que estão longe de ameaçá-la, pois sua visão já carrega uma lente desordenada que ofusca a sua percepção do mundo.  

 

Aqui, nos confrontamos com um paradoxo: o medo pode ser saudável e gerar atitudes eficientes para preservar a nossa vida (e espécie), mas também pode ser paralisante, prejudicando a percepção da realidade, as relações interpessoais, a interação com o mundo e as motivações para agir sobre ele. Os desdobramentos podem ir de graves transtornos a quadros depressivos. Como algo pode deixar de ser saudável e passar a ser tão grave? 

 

No início do alastramento do vírus, a informação do perigo e toda a catástrofe que ele é capaz de fazer estava sob o nosso controle. Nosso medo e ansiedade estavam lá, preparados, porém, contidos. Em um instante de distração, o perigo estava a solta e o perdemos de vista. Agora, basta abrirmos a porta de casa para estarmos expostos a ele. É como segurar um pote de vidro fechado com um escorpião dentro e derrubá-lo, deixando-o fugir. Enquanto está no vidro, sabemos que ele pode nos matar com o seu veneno, mas isso não é possível enquanto o tivermos sob os nossos olhos e controlando absolutamente todos os seus movimentos. Se ele foge, a incerteza e o caos se instalam, pois já conhecemos as consequências letais de uma “picada”.

 

Essa perda de controle das situações atormenta os mais ansiosos, que agora criaram um mecanismo para se defenderem de qualquer coisa que sinaliza o perigo, seja ele apenas um passo para fora da porta, uma voz diferente dentro de casa ou uma possibilidade remota de contágio que nem se tem certeza que é possível. Ora, afinal, tudo que eles querem é ter controle de todas as variáveis para se prevenirem com eficiência e fecharem sua redoma para não darem margem às possibilidades.

 

A obsessão pelo cuidado junto ao pavor do inesperado é a combinação perfeita para o medo e a ansiedade se retroalimentarem. Conforme continuamos atribuindo significado e “veracidade” a situações hipotéticas, estamos alimentando um monstro com fome egoísta e desenfreada, capaz de consumir a nossa racionalidade e nos acorrentar nas suas ilusórias promessas de segurança. O medo paralisante nos impede de ficarmos sensíveis à nossa realidade, aos nossos fortúnios e no quão valioso é poder estar vivo. 

 

Nessa crise pandêmica, é importante atentar-se à duas coisas importantes. A primeira delas são as questões humanas individuais anteriores a um evento crítico. Isso significa refletir sobre as reações frente aos fatos e perceber se o cuidado é condizente com a realidade ou é uma forma sofrida de sanar, temporariamente, uma obsessão. O “acesso ao excesso” também é um dos maiores catalisadores do desencadeamento das tensões psicológicas. A informação só não é mais importante do que a busca pela verdade. Ela pode, sim, trazer desconforto. Entretanto, é mais favorável diminuirmos as chances da ocorrência de crises ansiosas e pensamentos obsessivos e aumentarmos as chances de fazermos o esforço de voltar a nossa atenção para aquilo que temos de precioso: um lar, família, amigos e a própria vida. 

 

Sim, é necessário que tenhamos medo e tomemos atitudes dando a sua devida credibilidade, pois o perigo é real. O escorpião está a solta. Entretanto, este texto serve para que você faça uma avaliação acurada da realidade e da sua reação frente a ela. Ao termos plena convicção de que fomos “picados” pelo escorpião, podemos adoecer ao imaginarmos o desastre que o veneno está fazendo no nosso organismo, quando, na verdade, apenas sentamos em um alfinete.