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Àqueles que se sacrificam por nós: seria o amor uma dívida?

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Por Gustavo Menegon - estagiário do Núcleo Evoluir

             Não é simples falar sobre relações entre pais e filhos. A dificuldade não se encontra somente na gigantesca variabilidade de comportamentos que podem ser observados nessas relações, se dá também nas funções que cada um exerce dentro delas – o que é ser aquele que cuida e o que é ser aquele que é cuidado? A partir de uma perspectiva puramente genética, pais são sinônimos de progenitores, aqueles que nos geraram, literalmente nos trazendo à vida. Entretanto, estendendo um pouco a discussão sem sair do campo da Biologia, encontramos o conceito de “cuidado parental”, um fenômeno muito relevante dentro da história evolutiva, principalmente das aves e boa parte dos mamíferos.

            Cuidado parental consiste no investimentode tempo e esforço que certos animais fazem em sua prole. Isso inclui desde buscar alimento para os filhotes quanto lutar até a morte contra um predador para protegê-los, sendo, em resumo, comportamentos que os animais emitem para garantir a sobrevivência de seus filhotes, ocasionando na dispersão de seus genes e na perpetuação da espécie. Esse é um dos fatores evolutivos que permitiu a inúmeras espécies continuarem a existir e, ainda que existam diferentes estilos de cuidado parental, essa variável também está presente na história evolutiva humana, basta observar a vulnerabilidade que acompanha os bebês durante vários anos de seu crescimento.

            A seleção natural pressionou a nossa espécie a desenvolver esse cuidado mais próximo e duradouro com a prole e, através disso, permitiu que relações além das biológicas surgissem, trazendo os pequenos à dimensão social da vida humana. Os pais, entendidos aqui como quem cuida ao invés de laços sanguíneos, normalmente são a primeira instituição que insere a criança em espaços de socialização. É ali onde a criança aprenderá a se comunicar, a andar, se alimentar e outros comportamentos fundamentais para a vida. Entretanto, ensinar uma criança está longe de ser uma tarefa fácil, uma vez que demanda muito tempo e energia dos cuidadores e nem sempre todo esse investimento “dá certo”.

            É comum cuidadores entrarem em contato com sentimentos extremamente aversivos como frustração, raiva, preocupação, medo e muitos outros devido a relação que estabelecem com as pessoas que necessitam de seus cuidados, aos quais podemos nos referir como filhos. Somado a isso existe a construção cultural do valor de serem “bons pais”, a qual permeia as práticas parentais de cuidado e é diferente para cada cuidador– os filhos não vêm com um manual de instruções do que deve ser feito ou qual jeito de cuidar é melhor.

O investimento, seja afetivo, de tempo, de recursos ou qualquer outro feito, além de ser muito custoso, pode ficar mais sob controle da remoção daqueles sentimentos aversivos do que da própria valorização do comportamento de cuidar. Esse contexto contribui para que verbalizações como “você não sabe o que eu faço por você”, “quero ver quando você tiver um filho” ou até “eu não valho nada para você!” apareçam.

            Contudo não é justo culpabilizar os filhos por isso. Ao mesmo tempo que cuida, a família deposita expectativas e exigências sobre eles, acreditando que está construindo um bom caminho a ser percorrido, afinal também passaram pelo mesmo processo de serem cuidados.Porém, e muitas vezes, o que planejaram não condiz com a reais necessidadesdos filhos ou com os valores que eles estãoconstruindo. Num cenário em que transformações culturais ocorrem muito mais rápido do que antigamente, o choque de valores entre gerações se torna cada vez mais potente e desgastante para ambas as partes.

Essas expectativas e exigências podem pesar para quem recebe esse cuidado, e ainda que não aparentem pesar tanto assim, não há como realmente saber seu peso real – a balança dos filhos é completamente diferente da dos pais. Uma mãe pode idealizar e dar todas as condições para que seu filho se torne um renomado profissional da saúde, mas ele não se vê em outra carreira se não em dar aulas de matemática. Um pai pode sonhar dia após dia em ver sua filha subindo no altar com um vestido branco, porém, quem ela realmente ama não pode se unir a ela em matrimônio dentro de uma igreja.

Cuidado, no final das contas, também é sacrifício. Apesar de culturalmente relacionarmos cuidado a amor, como no ditado “quem ama, cuida”, não é saudável fechar os olhos para as consequências que esse tipo de relação pode trazer. O contexto de necessidade de um cuidado mais próximo que os filhos vivem até a idade adulta, em conjunto com uma cultura que valoriza qualquer tipo de investimento como uma maneira de obter algo em retorno, pode criar uma relação de dívida dos filhos para com quem os cuidou. Sobre os ombros, os filhos carregam, além das expectativas dos pais, a responsabilidade de devolver o amor que receberam ao longo da vida.

Isso demonstra que ser filho não é simplesmente ser cuidado, mas também lidar com todos esses fatores adjacentes ao amor que recebem. Quanto à pergunta do título, é complexo dar um veredicto, porém, ao mesmo tempo, é problemático afirmar que é uma dívida. Se for encarado dessa forma, então toda nova geração estará fadada a cumprir o que lhe é arbitrariamente posto pela geração anterior e, caso não consiga, irá sofrer com uma carga emocional decorrente desse “fracasso”, o que pode ser interpretado até como uma “ingratidão” dentro dessa lógica. Além disso, se ser filho, assim como ser cuidado, não é uma escolha, mas uma condição dada, por qual razão devemos depositar tamanho peso em relações que são construídas pelo afeto?

Tratar o cuidado, ou caso prefira chamar de amor, como uma dívida é desperdiçar a leveza consequente dessas interações e colocar mais peso sobre o que já é custoso. É uma dívida que tira subjetividade dos filhos para transformá-los numa extensão da vida dos pais, uma vez que esses não tiveram a oportunidade de viver a sua própria. Suportar esse ciclo de controle aversivo também cria a ilusão de que as pessoas só poderão ser felizes e realizadas quando se tornarem pais, já que somente nesse momento terão contato com o que lhes é importante através de seus filhos. Vale ressaltar que o discurso de “se eu não posso viver isso, meu filho viverá por mim” raramente é explícito para ambas as partes, dificultando ainda mais romper com essa dinâmica familiar.

Diante dessas condições, o diálogo entre pais e filhos se torna fundamental para contrapor essa postura de culpa e exigência. Não é fácil expor nossas frustrações e angústias para com quem amamos, porém é a forma mais funcional de transformar uma relação de dependência em uma de respeito a individualidade do outro.

Referências

MANFROI, Edi Cristina; MACARINI, Samira Mafioletti; VIEIRA, Mauro Luis. Comportamento parental e o papel do pai no desenvolvimento infantil. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, v. 21, n. 1, p. 59-69, 2011.

KOBARG, Ana PR; SACHETTI, Vírginia AR; VIEIRA, Mauro L. Valores e crenças parentais: reflexões teóricas. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, v. 16, n. 2, p. 96-102, 2006.